Quatro dias, uma moto e uma mochila

Road trip de Lisboa a Baiona, em França (primeira parte)
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Diário de Bordo
Diário de Bordo

LISBOA. Abalo depois de um memorável almoço com o Manel. O meu amigo motoqueiro (Pan European, CBF 600, CB Seven Fifty, Diversion, Virago) é um bom garfo. Opto pela ponte sobre o Tejo. A aragem, estranhamente, parece dilatar o espaço. O rio é majestoso. Em Lisboa, é mesmo!

É uma viagem sem acompanhantes. E sem destino.­ Ao contrário da última: uma ida à concentração de Faro com quatro companheiros da TVI:  Manuel Batista, Luís Branco, Júlio Barulho e Flávio Almeida.

Foto Luís Branco

O grupo improvisado de motociclistas da TVI levou umas laboriosas oito horas a chegar ao Algarve. Autoestrada até Marateca e, a partir daí, nacional.

Eu gosto da paisagem do mundo (da gente humilde e anónima dos lugarejos perdidos) e de refrescar a garganta das securas dos meus solilóquios.

Foto Luís Branco

Há estradas nacionais que parecem perfeitos túmulos desolados a céu aberto. A solução é seguir caminho com presteza...

VENDAS NOVAS. Sem pressas, decido abandonar a A6. Desta vez, o tempo não conta. É como a 6ª velocidade da Honda CB 1100 EX, que só serve para longos trajectos de autoestrada. A marca japonesa ficou-se por quatro cilindros de 90 cavalos. Podia ter aumentado a potência para 100, 110 ou 1...

A primitividade dos meus pensamentos é perdoável. Faz um calor de rachar na planície alentejana.

MONTEMOR-O-NOVO. O importante, hoje, não é o destino. Chegar é, aliás, irrelevante. O que importa é partir, viajar. É a liberdade. Dou comigo a matutar, sem querer, que andar de moto é como navegar.

Foto Rui Araújo

Penso nas minhas desventuras a Norte de parte alguma no Atlântico. Cheguei a narrá-las na revista LUZES de A Corunha.

A reportagem acabava assim:

A conversa em torno da mesa é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

— Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços... — explica Magrás.

— São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

— Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta... — adianta.

— Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo... — propõe-me Magrás.

Acabamos por atracar no Mindelo. Luís é, imediatamente, transportado para o hospital. Largamos amarras (os pescadores preferem a expressão “largar cabos”) segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me melhor no mar do que em terra. E não estou aqui a fazer nada.

Malulula morreu no próprio dia da chegada. Pediu-me dinheiro emprestado, meteu-se nos copos e o carro em que seguia capotou. Mas valeu a pena, independentemente do resultado. Tentei. É isso o mais importante. E a maior vitória será sempre sobre nós próprios…

Ensinei Malulula a ler e a escrever. Três semanas de mar e uma tempestade foram mais do que suficientes para ele conseguir gatafunhar o seu nome pela primeira vez na vida. A dignidade de um homem começa pela literacia. Malulula morreu num desastre no dia em que atracámos no Mindelo. Tinha 40 anos. E uma família para sustentar, pelo menos isso...

Foto Rui Araújo

PASTANEIRA. Apesar da grandiosidade da planície bravia, dou graças ao destino por ter nascido junto ao mar. Esta paisagem árida, poeirenta e monótona atordoa-me. E o motor da Honda aquece...

ARRAIOLOS. Paro no parque à beira do restaurante O Forjador... Pausa e café. As especialidades do estabelecimento são as empadas de galinha e os bolos tradicionais.

ESTRADA NACIONAL 4. É mais uma tarde canicular. E os dias largos ainda nem sequer chegaram. A CB 1100 EX na estrada parece mais ligeira do que é na realidade: os 255 quilos (sem contar com o condutor, o combustível e a mochila) não significam perda de agilidade. A máquina parada é demasiado pesada para o meu gosto.

Vimieiro e, em seguida, Estremoz. Em Borba, hesito. Tenho gasolina para mais 100 quilómetros. O depósito leva 17 litros mais coisa menos coisa.

Badajoz? Ou meto pela N255 em direcção a Monsaraz? Eu gosto daquela vilazinha medieval alegre e buliçosa alcandorada sobre um cabeço. Do esplendor de antanho restam as casas caiadas e uma calçada bruta de xisto. E o castelo. E o muro da cerca, que esconde com parcimónia a melancolia daquela terra poeirenta e abrasadora e uma luzidia albufeira verde-doirada que se estende até ao horizonte.

MONSARAZ. Casa Pinto. Parece que foi ontem. Fiquei na pensão situada diante da sumptuosa igreja de Nossa Senhora da Lagoa, ao lado de um pelourinho de factura oitocentista.

Deus (que não a Fé) e a Justiça dos homens no mesmo espaço. Era o local ideal para mim, o zeloso e fiel combatente da infâmia e dos actos de arrepia-cabelo que corroem a normalidade (?) da sociedade bem-pensante ou tão simplesmente o fingidor de jornalista.

Parece que foi ontem. Eu lembro-me. A porta baixa de linhas austeras da Casa Pinto estava entreaberta. Entrei. A residencial, que tinha sido restaurada pelo novo dono, um espanhol afável mais triste do que taciturno, preservara o decoro devido à tradição. O resto não é para aqui chamado. Morrer mal é a mesma coisa que morrer...

No fim de contas, vou em direcção a Elvas. Não dá para matar o Diabo, mas teimar em correr atrás de fantasmas do passado é doentio.

ELVAS. Depois de dar de caras com uma operação da GNR, decido fazer uma paragem imprevista. Paro. Esboço um gesto de repulsa assaz patético, mas sincero. O raio da viseira está cheia de insectos. Puta que os p...

Limpo o capacete e abalo ou, por outras palavras, invisto contra uma soalheira, tão rija que faz calar as cigarras (como diria Aquilino).

CAIA. Depois da fronteira desolada, cada vez mais simbólica (apesar da propagação dos populismos por essa Europa fora que não consegue entender-se), começa a E-90/A-5.

Foto Rui Araújo

BADAJOZ. E a seguir? Podia enveredar pelas estradas secundárias, mas não o faço apesar de serem as mais interessantes porquanto permitem descobrir um país quiçá desconhecido e “escutar o canto dos pássaros”. Os meus amigos Corina Arranz e Alfonso Armada (integrámos o bando de jornalistas ou de apanhados que cobriram o princípio do genocídio no Ruanda), que o digam. Acabam de publicar “Por carreteras secundarias – Una huida” (Malpaso Ediciones, Barcelona): histórias dos encontros e desencontros de um casal que corre a Espanha por  “estradas menores, as mais humildes, as que nunca chegaram a nada ou que acabaram por ser relegadas por uma qualquer via rápida próxima” – como refere Ignacio Martínez de Pisón no prólogo.

A natureza disciplinada acompanhou os grandes eixos rodoviários. E as aldeias antigas e vazias, desertas de gente, proliferam.

Foto Rui Araújo

A 120 quilómetros por hora (a CB 1100 EX dá 190 se o condutor tiver vocação para sofredor!) chego ao bar El Torero em menos de meia hora. Na primeira estação de serviço, meto gasolina e compro dois sprays: limpa viseira e limpa capacete da Tyrson Oil. Por um euro resolvo a praga dos insectos. Em parte... que eles andem por aí, andem, propagam-se, suicidas sem vocação apesar de Albert Camus jurar que é a questão filosófica mais importante...

LOBÓN. A via rápida passa perto da vila, situada a 35 quilómetros (praticamente a meio caminho entre Badajoz e Mérida). A escassa circulação rodoviária em Portugal – sobretudo de camiões e carrinhas – contrasta com o movimento daqui. E as velocidades praticadas...

Foto Rui Araújo

A solidão imposta é sempre dolorosa. É sentida frequentemente como um castigo ou como uma injustiça. Estou, aqui, só por opção. É um prazer. A CB 1100, aliás, só dá para uma pessoa. Se o pendura não for magricelas ou, porventura, raquítico, não consegue aguentar-se sentado. Havia outras escolhas sensatas: a Triumph Bonneville, a Guzzi V7, a Ducati Scrambler, a BMW Nine T, a Yamaha SCR 950 e, last but not least, a Harley-Davidson Forty-Eight, mas a estética neo-retro e a fiabilidade dos motores da Honda determinaram a compra. Irracional?

LOBÓN. O bar El Torero está fechado. O café é estupendo e o patrão uma pessoa afável. É, quem sabe, um filósofo. A mensagem pintada em letras garrafais no espelho diante do balcão é peremptória: “ Por muito alta que seja uma montanha, há sempre um caminho até ao cimo. Tudo é muito difícil antes de se tornar fácil.” Do outro lado do pilar, meio escondido, acrescentou: “O segredo está na vontade.

Foto Rui Araújo

LOBÓN. Acabo por ir parar à esplanada do lar da vila. As veredas da vida estão muitas vezes onde menos as procuramos. Os velhos sentados à minha volta conversam ou dormitam, aninhados nas recordações ou no esquecimento. Penso no meu querido pai. E despeço-me.

TRUJILLO. No cimo de um prédio arcaico ou decrépito da Plaza del Campillo, a passarada encastelada bate asas e some-se. À hora do crepúsculo cada qual acoita-se onde pode. Empurro a porta do Hotel Victoria. Fico no quarto 109. O 110 é mais bonito, mas está ocupado.

Deambulo, vagueio para matar o tempo ou simplesmente para apaziguar a memória atordoada. A Tienda de Isidro – Chorizos Caseros fica no outro passeio, paredes meias com o Hostal - Restaurante Julio.

A mercearia está mergulhada na obscuridade. Dou as boas tardes. Uma cliente bem-parecida observa algo numa prateleira. Um velhote, magrinho, ágil, que arruma latas, mete conversa comigo. É o pai de Isidro, o dono. Tem 90 primaveras ou outros tantos invernos.  Faz parte dos encontros improváveis. Conta-me que foi operário da construção civil e que agora passa as tardes no estabelecimento. E que só arreda pé na hora do fecho.

— E de manhã? — indago.

— De manhã, estou no mercado.

Foto Rui Araújo

Isidro confirma com os olhos as palavras do pai.

— Temos óptima patatera...

— Estou mais interessado no queijo do que nos enchidos... — informo.

— Tenho um curado de cabra, aqui, da Estremadura que é fenomenal...

Foto Rui Araújo

Duas velhotas descoradas, trajadas de negro, passam diante da porta. Parto.

— Há alguma livraria em Trujillo? — pergunto por perguntar.

A da esquerda acena que sim. A outra nem por isso.

— Só temos uma. É na Calle Tiendas. É antes de chegar à Plaza Mayor. Fica no lado direito de quem sobe...

Agradeço a resposta ou a doçura do tom. A doçura das espanholas é uma realidade.

— E como é que é a vida aqui?

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